quinta-feira, 26 de novembro de 2020

Incorrespondido


Gastei muitos dos meus dias em profusas narrativas delirantes, que rebobinavam a cada novo encontro, feito encenasse o mesmo papel em diferentes contextos e repetisse as mesmas falas enfadonhas. Existe toda uma cronologia pouco óbvia mas tão ordinária quanto as pieguices românticas numa cena de amor insuficiente, daqueles que nós costumamos chamar de incorrespondidos, mas que, no fundo, não se correspondem em intensidade e intencionalidade, porém, que se cruzaram em dado momento, hora, segundo e olhar, amores que coexistiram simetricamente - se é que isso seja capaz - mas num espaço e tempo pouco provável e escasso de se tornar material. As conexões só dão certo quando as fantasias se espelham, mesmo que em reflexos borrados e astigmáticos. O amor está diretamente condicionado a fantasia e sua capacidade em integrar o outro nela, àqueles que não cabem resta essa repetição eterna de conexões insuficientes, escassas, apoucadas, delirantes e piegas.


Anna Valentina

Sorriso



A inevitabilidade do sorriso que acompanha a tua voz radializada pelo auto-falante do celular, que achego ao pé do ouvido quase como um chamego sonoro, me diz mais que qualquer enunciado vulgar na tua pronúncia. É dilema de enamoro, calcanhar de Aquiles; é denúncia.  


Anna Valentina

terça-feira, 31 de março de 2020

Palavras


Por ora ainda me pairam certas dúvidas, quisera que tudo fosse resoluto. Mesmo no exercício de ser o mais claro, o mais inteligível e límpido com as palavras, sempre vai haver o que se escape. Afinal, nem tudo pode ser dito, ou deve ser dito, não!? Porém, as obviedade verbalizadas tornam-se raras àqueles que as escutam. Gosto de pensar que fui óbvia, mesmo nos meus excessos, ainda que sob a reputação de louca, melindrosa, ruidosa, ah, dane-se! Hei de não morrer engasgada e nem afogada na deglutição de certas profissões. Contudo, quando não posso sonorizar o que quero para quem quero, aprendi a pôr em palavras, embora as conte unicamente para o bloco de notas ou o caderninho de cabeceira, intimamente, conforta-me que estejam materializadas e não morrerão comigo e nem assombrarão os sicranos e nem os fulanos, a quem ficou pendente.




Anna Valentina


domingo, 22 de março de 2020

O que acaba


As forças parecem se acabar. Parece? Acabam? Quais forças? Não me recordo ao certo em que momento a tristeza deixou de fazer sentido, nem de ser sentida. A vida parece que amenizou, no mínimo, esvaziou. Nada me é de tanto apreço que não pareça preciosismo. O que se perde já não faz tanta falta, questiono-me se, de fato, falta. Talvez nossas perdas não passem de devoluções de empréstimos, pois a posse tem tudo de ilusório, ainda assim se faz velório para o que, inevitavelmente, vai, se esvai, acaba. Que tudo que começa é feito para acabar, sem aviso prévio, mesmo em meio ao estopim. Viver é um preparar-se diariamente para o fim.



Anna Valentina

quarta-feira, 18 de março de 2020

Amor?


O amor?
não, o amor não é tudo…
Quiça fosse o que gostaríamos que fosse
ou que deveria ser
Talvez tenha sido o que nos dissemos que era
suficiente
Que o amor desperta nossas maiores virtudes
Ah, se desperta!
nos diz o melhor de nós
Mas amor…
no pornô, no ócio, na insônia, na bíblia
na infâmia, na cama, na doença, na lama, na desavença…
não basta
e gasta.
Amados vão embora
amores abandonam
amantes odeiam
odeiam
pois os sentimentos mais intensos
tendem a ambivalência
e a falência
Quem ama esquece
quem ama briga
quem ama, às vezes, não lasciva
quem ama acovarda
insatisfaz
Quem ama, às vezes, só ama
e nada mais.



Anna Valentina

Partidas


Me pego a ir embora, são pontos finais que às vezes parecem reticências, mas que ao virar a esquina são becos sem saídas, inóspitos e vazios. Eu costumo partir por injustificativas, quando as mutilações passam a doer demais, porque quis caber, porque fiz malabares com escassez e me percebi pouco apta ao circense. Chorei em terra infrutífera e beijei desencantos, até entender que minha ânsia por partir é parte que me compõe. O meu lugar é na ida, nos fins que se entrelaçam, nas palavras saudosas e nos cheiros nostálgicos carregados na nuca. Quem vive de ir-se embora é quase que crepuscular, fulgaz e anódino.


Anna Valentina