terça-feira, 6 de agosto de 2019

Eu, travesti


Nós somos uma noite, às vezes várias, que, no entanto, se resignam a quatro paredes erguidas diante de todo e qualquer público. Uma experiência lasciva, infame, feito diabas, somos as crias do inferno - daquelas que propiciam o céu.
Ademais, estamos privadas de afeto, senão, vivemos de afetos privados.




Anna Valentina

segunda-feira, 24 de junho de 2019

Imatura


A si mesma se machuca por não saber distinguir a má sorte, por não ver norte, por enredar por vielas vesgas e escuras, por estar descalça sobre o campo de pedras pontiagudas dos próprios desejos, e morre a cada ensejo desatinado que acaba num sopro seco de quem não tem como amparar-te amor, de quem não te escreveu carta e contigo fez troça pois quisesse plantar sentido, mas não é fértil, nem tem lugar, vá-te embora que já passou da hora de se atentar, ou dia após dia adormecerá menina, num sono imatura e profundo no qual a cada noite há de se afogar.


Anna Valentina

Excessos


Os excessos, fora corrompida pelos excessos que me habitam, pois famigerei-me diante do amor, ouvi o que não entendia, entendi o que não devia, fiz o que pude sem poder, disse mais que se cabia dizer. Desesperei-me com medo da preterição, te quis segurar com a mão. Que quando teus olhos se mantinham diante dos meus, cálidos e penetrantes, feito fossem capazes de me ler por inteira e me arrebatar os entraves, o mundo se sentia, ainda que nada me fizesse sentido de ser, sentia, indistintamente, sentia.


Anna Valentina

quarta-feira, 22 de maio de 2019

Conquista



Não é a esbelteza a que me apego, o físico das vaidades almejado a mim pouco chama a atenção, não me instigo por um dorso delineado, nem por um peitoral avantajado. Hei de ser ganha pelos timbres dos risos, aquela sonoridade que distingue a razão da alegria de cada um, que nos singulariza na mais simples vibração. Sou fisgada pelos olhares afixados, pelas pupilas acrescidas, pelo lacrimejar do interesse encoberto. Conquistam-me os trejeitos que nos despem antes mesmo de qualquer intimidade, que nos entregam a profanidade. Sou susceptível a amar o que se mostra paulatinamente, que não convém a exaltação primeira, mas que me seduz e me rende a paixão derradeira.


Anna Valentina

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Estimar



Estimar, quando você me diz que me estima... é bonito. Eu mesma uso muito, mas estimar às vezes pode soar tão impessoal, é um sentimento meio imaculado, me parece, porque é como se ele não vislumbrasse o íntimo. Você estima um professor cujo o intelecto se sobressai, você estima um advogado que te transmite ser ético, você estima uma atriz que atua magistralmente, você já me estimou bem mais quando mal nos conhecíamos. E é absolutamente normal que relações que ganham nuances mais profundas percam um pouco suas estimas, porque antes você me achava simplesmente uma mulher massa, inteligente, com coisas pertinentes a serem ditas, mas quando passamos a descortinar o nosso íntimo, você conheceu minhas fragilidades, minha autoestima lesada, meus comportamentos destrutivos e advindos de uma infância complicada, assim como eu conheci os teus. E é a partir daqui que a relação passa a ser um desafio, porque ela exige paciência, exige cumplicidade, exige humildade, é aqui que o amor se constrói, é quando, desnudos de todas as nossas virtudes, somos capazes de conceber um sentimento que subsiste ao pior do ser humano e que, sendo bem cultivado, nos frutifica com o que nem supusemos estimar… te amo d’um tanto que eu até me esqueci de rimar.




Anna Valentina

quarta-feira, 17 de abril de 2019

Processo aliterário


Passo por um processo 
que pelo excesso me evoca o desprazer 
desagrado do não saber 
se caminho adiante ou se regresso 

Plantada horas sobre o assoalho 
rega-me os pés a lágrima da tormenta 
contudo declino em ato falho 
que no desequilíbrio se assenta 

Não há um norte para onde ir 
Sou sombra que vaga sem precisão 
Processos levam-me a diluir 
Devaneio do devir, existir; a aliteração.



Anna Valentina

terça-feira, 2 de abril de 2019

Supor


Supus ser ironia, a princípio, você e seu galanteio, aquele enamoro enunciado porém nunca materializado. Nosso flerte parecia-me tão ideal, daqueles que a gente acostuma a não ter se não no imaginário. Supus que talvez fosse o horário. Supus que fora a embriaguez. Supus um tanto de eventualidade para com a minha timidez. Então teu toque me alcançou num primeiro abraço, num primeiro beijo, mas teu cheiro já me foi freguês, e que bom freguês que ele permanece. Supus que cousa assim a gente não esquece. Obrigada por me visitar, já não espero que venhas pois hoje entendi que não há o que se esperar. Suponho, porém, hei de guardar com carinho esse momento onde fomos, materialmente, um par.


Anna Valentina

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Desaguar



Aos poucos os versos liquefazem em pequenas desilusões e se quebram em colos, escorrem e correm entre os vãos. Tentamos secá-los como se nessa fricção de pulsos e panos nós fôssemos capazes de estancar o deságue da exaustão. Então vaza e vaza e vaza até se esvaziar, em nem tudo que é sentido há sentido, permitir-se que transborde, para o desanuviar.


Anna Valentina

Silêncio


Me calo, que adiante não há nada além do silêncio a ser dito, os suspiros vertem, os olhares vertem, qualquer movimento parece penoso demais. Não dizer nada é impreciso todavia é uma resolução assertiva, pois não te digo o que és, onde me cabes, se é que cabes, mas te entrego o indiferente vazio do não pretender, do que finda de repente, do que há de se esquecer.


Anna Valentina

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Só II


Não me fale dos pormenores, pois o que me resta se não a latitude das nossas distâncias, destas palavras entrecruzadas, destes olhares precatados, da impessoalidade declarada no teu verbo singular? E me deixas só, ademais; que ainda que teus pés cá repousem, é acolá que estás.


Anna Valentina


sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Encontro


És tão contrário a mim, que me pego apegando a trejeitos tão triviais, dum olhar obsceno a um cruzar de mãos. E mesmo com toda a minha polidez, tu me desarmas com a tua falta de pudor e tua linguagem desbocada, às vezes riu, às vezes fico encabulada. E enrubesço, e dos meus próprios pecados me esqueço, que perto de ti a minha indecência não parece tão imoral. Desculpa fazer você parecer um menino mal. Eu sei do teu jeito que fácil se aborrece, é que fico querendo te ver sempre confortável, não esquece! Aliás, tem coisa muito mais importante procê se importar. Tipo a paz mundial, ou não deixar a saudade me matar.


Anna Valentina